
Dentre os discípulos, Pedro, Tiago, e seu irmão, João, foram os mais íntimos de Jesus. Os evangelhos nos autorizam a afirmar isso porque, quando o nazareno queria se fazer acompanhar de um grupo mais restrito, era a estes que chamava. Tiago estava também entre os mais impetuosos. Talvez este traço de personalidade ajude a explicar sua pregação nos confins do mundo conhecido, como era a península ibérica. Do mesmo modo, pode explicar o fato de ter sido o primeiro, dentre os doze apóstolos, a morrer em nome da nova fé. Ao retornar a Jerusalém, Tiago foi decapitado, no ano 44, por ordem de Herodes Agripa I.
Após sofrer martírio, o corpo de Tiago foi recolhido por dois discípulos seus, que o acompanhavam desde a Galícia e sepultado nestas terras. Séculos depois, fenômenos luminosos revelariam o local da tumba ao eremita Pelayo. Isso se deu entre 820 e 830.
Do surgimento de um templo à formação de um importante polo de peregrinação para toda a cristandade foi um passo. Peregrinos acorreram de toda a Europa, em busca de alguma graça. Aqueles que vinham de Portugal foram responsáveis por traçar o Caminho Português; os que vinham do restante da Europa firmaram diversos trajetos, sendo mais célebre o conhecido pelo nome de Caminho Real ou Francês, até hoje percorrido por cerca de três quartos do total de peregrinos.
Em 1122, o papa Calixto II concedeu à Catedral de Santiago o privilégio do jubileu pleníssimo. Isso significa que peregrinar até a catedral nos anos em que o dia 25 de julho incide num domingo (data dedicada a Santiago) confere ao fiel o perdão pleno de seus pecados. Lembrar que na Idade Média a igreja chegava a vender indulgências ajuda a ter ideia da importância do ato papal. Daí passados quase dez séculos, até hoje se nota a influência dos “anos santos” sobre o afluxo de peregrinos.
Dependendo da perspectiva pela qual se olhe, podemos enxergar profundas diferenças entre o peregrino medieval e o contemporâneo. Na Idade Média, por exemplo, era permitido enviar um representante até Santiago. A peregrinação podia ser feita por um vassalo, em benefício de seu senhor. Além disso, o caminhante estava mais vulnerável às intempéries e às doenças, sem contar os ataques de salteadores.
Hoje há vasta infraestrutura de serviços, cujas portas se abrem mediante a apresentação de um singelo cartão de crédito. Equipamentos high tech atenuam as dores do caminhante e há bastante segurança.
Mas também há semelhanças. Mesmo que a Igreja Católica tenha perdido boa parte de sua autoridade política, e que o Cristianismo tenha se diversificado sob pregações variadas, não é possível negar uma fé que move multidões. Santiago continua inspirando-a. Porém, nem todos percebem que o “milagre” não se opera na catedral, e sim no Caminho que leva até ela. É o tempo que o peregrino reserva aos cuidados para consigo mesmo, a solidariedade aos outros, a simplicidade do dia a dia nos albergues, a abertura para novas experiências, tudo isso contribui para transformar seu interior em espelho do altar que encontrará na grande Catedral. Isso é o Caminho de Santiago: fora e dentro; ontem e hoje. Acima de qualquer coisa, é nos passos do peregrino que o Caminho vive.
Antoin Khalil é advogado e membro da ACACS/SP – Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela.