Por: Lucas Pereira
Dalton Paula tem colecionado grandes feitos. O artista visual e arte-educador, nascido em Brasília e radicado em Goiânia, é hoje um dos nomes mais representativos da arte brasileira internacionalmente. Em 2016, ele integrou a 32ª Bienal Internacional de São Paulo; em 2018, fez parte da exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP); em 2019, expôs no “36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM); já em 2020, fez sua primeira exposição individual “Dalton Paula: Um Sequestrador de Al-mas”, na Alexander and Bonin Gallery, em Nova Iorque, e teve retratos expostos no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA). Entre essas e tantas outras conquistas, neste ano, ele integra a 60ª Bienal de Veneza, na Itália, a principal mostra de arte contemporânea do mundo, e foi o único brasileiro selecionado para o Prêmio Chanel Next Prize 2024.
Bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Dalton chegou a ser bombeiro por cerca de dez anos. “Minha primeira lembrança de olhar para a arte se dá no Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC), quando ingressei na Faculdade de Artes Visuais, em Goiânia, e me deparei com a exposição do [artista plástico sergipano] Bispo do Rosário. Foi uma espécie de portal para esse universo, senti o desejo de fazer isso para o resto da vida”, relembra. Na infância, já gostava de desenhos animados, era fã dos Cavaleiros do Zodíaco, colecionava revistas de super-heróis, copiava desenhos com papel carbono e os coloria com lápis de cor. “Eram brincadeiras que hoje entendo como um chamado para esse universo das artes”, diz.
Em suas obras, se dedica a representar o corpo negro, resgatando figuras brasileiras históricas a partir de possibilidades positivas, com dignidade, altivez e orgulho. “Não existiam imagens exatas dessas personalidades, sabia-se muito pouco sobre elas. Então, entendo esse trabalho como um documento para futuras gerações, que traz a história desses personagens tão importantes para a constituição do País. É um legado de conhecimento sobre lutas por direitos e liberdade. É um trabalho que me refere muito à diáspora africana, às nossas relações com o colonialismo e a um novo pensar sobre esse corpo negro historicamente invisibilizado e silenciado”, afirma.
Retratos de liberdade
Suas principais referências são as comunidades tradicionais, os quilombos, os terreiros e subúrbios, que adquirem pinceladas de ressignificação a partir do seu olhar. “Meu processo criativo começa com uma base bibliográfica, então sempre tenho um livro que me acompanha. Realizo essa leitura e parto para as pesquisas de campo. Vou até os lugares onde aconteceram fatos históricos, visito acervos públicos, procuro conversar com os mais velhos, aqueles que têm funções na comunidade local, como raizeiros, benzedeiras, sacerdotes, líderes religiosos. E, no meio dessas conversas, com a escuta bem atenta, vão surgindo caminhos”, conta. Após toda essa coleta, ele retorna ao ateliê, onde deixa os pensamentos assentarem, para que tudo possa ganhar forma.
“Quando estou pintando, me sinto como um arqueólogo buscando parte do que seria o retrato daquelas pessoas. E nunca encontramos a completude. Por isso, parte da tela não é pintada, fazendo referência a essa incompletude, além de ser uma oportunidade para que o espectador preencha com o seu universo próprio. Dessa forma, essas partes sugerem e questionam os caminhos que percorremos, conectando passado, presente e futuro. A proposta é criar narrativas, trazer protagonismo e as subjetividades desses personagens dentro de suas histórias”, explica.
Pego de surpresa, como brinca, com a seleção ao prêmio de cultura oferecido pela Chanel, o Chanel Next Prize, Dalton é um dos destaques da Bienal de Veneza, na Itália, que teve início em abril e segue até novembro. “Sou um artista muito sonhador, e para mim é muito importante ocupar as instituições, os museus, as galerias, a historiografia oficial. A Bienal de Veneza é um espaço de muita visibilidade, a mais importante do mundo, e é muito valioso que esses personagens que foram invisibilizados na história possam ganhar um lugar de destaque, como aconteceu antes, com Zeferina, que eu digo ser a minha Mona Lisa”, brinca.
Um dos seus retratos de maior impacto, Zeferina foi capa do catálogo da exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, do MASP; apareceu no Metrô de São Paulo; chegou a ser capa da Folha de S.Paulo, e foi publicada no The New York Times. Zeferina foi uma líder das insurreições negras na Bahia e grande liderança do Quilombo do Urubu, no século XIX. “São personagens que saem do campo do pensamento, vão para a tela, ganham o mundo e chegam ao imaginário das pessoas”, conjectura o artista. No entanto, Dalton diz que não tem uma obra favorita. Para ele, cada série de trabalhos é uma viagem por meio da qual ele descobre novos lugares e pessoas. “Como um álbum de família que fica na memória. Eu entendo o trabalho artístico como o trabalho de uma vida, é a somatória de tudo. Então, é difícil eleger uma preferida, porque uma leva à outra, cada obra tem a sua importância na composição do todo”, enfatiza.
Grande Sertão Negro
Em 2021, Dalton fundou, em Goiânia, o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, um espaço com ares de quilombo-artístico, um refúgio cultural que se dedica a promover residências artísticas, com atividades educativas, oficinas, mostras de cinema e todo um organismo vivo de experiências que envolvem arte e natureza. “O Sertão Negro nasce a partir de uma consciência de ancestralidade e do entendimento das referências que vêm dos mais velhos. Se nas instituições hoje não cabem os corpos negros, nós criamos os nossos próprios espaços positivos. É um projeto muito político no sentido de pensar outras possibilidades para dizer não ao silenciamento desses corpos negros e permitir o ser e o estar no mundo. É um espaço que pensa o coletivo, uma escola no seu sentido mais sistematizado mesmo, para criar uma base sólida que permita aos artistas poderem seguir seus caminhos com firmeza e segurança”, diz.
Ao cruzar a entrada do Sertão Negro, é a natureza quem guia cada passo. As chamadas plantas de cura, tanto medicinal como espiritual, envolvem o portão, compondo um portal para outro tempo e purificam a energia daqueles que adentram o lugar. No interior, um viveiro com diversas mudas nos lembra da importância de cada etapa do tempo, e uma fonte de água, com vários peixes, nos convida a respirar com calma. “Partimos muito da metodologia de terreiro, de quilombo. E não só, é um organismo vivo, que se modifica diariamente, se adaptando. Vivemos um tempo em que as coisas mudam muito rápido, então é preciso acompanhar o mundo. Hoje é isso e amanhã pode não ser, pode ser muito mais”, conceitua Dalton.
O ateliê conta com uma biblioteca com mais de três mil títulos, professores capacitados, curadores e ferramentas, em torno de um espaço que respeita e valoriza o meio ambiente, as plantas medicinais e cada elemento da natureza. A arquitetura do lugar é sustentável, com reservatórios para coleta de água da chuva e filtros para o reaproveitamento dos volumes descartados, além de uma bacia de evapotranspiração que reaproveita resíduos do esgoto para as plantas. As espécies frondosas envolvem o ateliê, como um abraço, como se posassem para as manifestações artísticas que nascem ali dentro.
O arte-educador conta que a palavra de ordem no Sertão Negro é a troca. Tanto que as refeições são feitas coletivamente, em momentos de descontração e confraternização, nos quais partilhar não se refere somente ao alimento. “Eu trago um pouco da leitura, da decodificação dos sistemas artísticos e a juventude traz a força, a urgência dos temas da atualidade. Aprendemos uns com os outros, muito pautados pelo tempo da natureza, do terreiro, do quilombo, onde as coisas são mais pausadas. É o tempo que leva uma semente colocada na terra para se desenvolver, germinar, ficar adulta, até dar fruto. Eu acredito que quando se consegue enraizar e ter uma base sólida, não é qualquer vento que te derruba, mesmo diante dos muitos desafios que existem nesse terreno das artes visuais”, filosofa.
Para ele, o mercado brasileiro de arte ainda tem muito a crescer. “Nós buscamos colaborar com isso aqui no Sertão Negro, com a criação da força de público, o entendimento de que temos artistas importantíssimos que têm muito a contribuir para o sistema das artes e que precisam de mais apoio e visibilidade”, diz. Assim, em uma jornada que mistura ancestralidade, natureza, educação e arte, em um coro que tem som de vento batendo na janela de madeira ou de pássaros que sobrevoam as flores do Cerrado, o artista entrelaça passado e futuro, por meio de um presente político, colorido e festivo. Dalton Paula é um menino-homem artista, de coroa reluzente, um sábio onipotente, que desenha resgates em um mundo bravio, mas de água corrente.
Matéria publicada na edição de número 50 da revista Zelo, confira o número na íntegra aqui!