Alice Galvão
Desde março de 2020, o mundo tem ressignificado o que a banda carioca Los Hermanos dizia lá em 2003, em um trecho da música Último Romance, no disco Ventura: “Sair de casa já é se aventurar.” O contexto da canção era outro e Rodrigo Amarante provavelmente não imaginava seu sentido futuramente aplicado a uma pandemia. Mas a frase tornou-se atual e aplicável no ano em que o mundo precisou de isolamento social e a casa, mais do que nunca, passou a significar acolhimento e proteção.
A lógica da vida moderna sofreu uma inversão e, nas palavras do arquiteto Kardec Delano Bonfim Borges, presidente da Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura Regional Goiás (AsBEA GO), “na história recente a gente nunca passou tanto tempo dentro de casa quanto neste período de pandemia”. Em entrevista à Zelo, ele ponderou que esse tempo fez com que as pessoas começassem a perceber as faltas e os excessos da sua estrutura de moradia e que, nesse sentido, a arquitetura tem o poder de curar ou adoecer, dependendo de como é projetada. “Bons arquitetos conseguem pensar em uma boa entrada de luz natural, grandes aberturas [importantes para amenizar o desconforto da região quente e seca em que vivemos] e uma ventilação cruzada, por exemplo”, pontua. E explica que se estes aspectos não forem considerados, a sensação é de mal-estar e desconforto.
Dentre as necessidades e preocupações surgidas neste período, o profissional elencou os espaços de descompressão, os cuidados com a alimentação e a imunidade, bem como a preocupação com a produção de lixo, higienização, sustentabilidade, eficiência energética e tecnologia. Itens também considerados importantes pelo arquiteto Leo Romano, que tem desenvolvido projetos adaptados a este “novo normal” para o segmento de alto padrão. Em um dos apartamentos que projetou recentemente, o hall de entrada passa a ser um espaço de higienização. “Nós inserimos uma pia, um suporte pra propés (sapatilhas descartáveis para cobrir os sapatos), um espaço de álcool em gel, de lixeira, de recepção dos sapatos”, descreve o profissional. Em outro projeto, um tanque foi instalado na garagem, para que os produtos que chegam do supermercado sejam devidamente higienizados antes de entrarem em casa.
“Eu acho que esse é um caminho sem volta”, determina Leo. Ele acredita na reversão de um comportamento anterior de uso da casa como objeto de ostentação e que agora é pensada como um lugar para se habitar e construir significados afetivos. Alguns ambientes foram mais valorizados, como o office, pela necessidade do trabalho em casa, e os espaços dedicados ao relaxamento e à espiritualidade também ganharam evidência na sua percepção. “Outro elemento que eu acho importante é um espaço voltado para atividades físicas”, complementa o arquiteto.
Convidado a imaginar como seria a casa do futuro, Leo Romano idealizou o Office Afeto, dentro do projeto Janelas Casa Cor Brasília 2020. “A gente chamou de afeto porque, ao mesmo tempo em que ele correspondia ao home office, trazia elementos sensoriais capazes de nos estimular para uma proximidade com o aconchego do lar”, explica o artista. O projeto também recebeu uma câmera, que captava as imagens dos visitantes e transmitia na televisão. “Como se a TV nesse espaço fosse o nosso suporte para algo muito comum nos dias de hoje, que são as lives”, conceitua.
Casa de temporada
Por falar em casa do futuro, outra proposta chamou a atenção neste período: a Ayla Smart House, construída na Pousada Shambala Piri, em Pirenópolis, pelo empreendedor Neylon Jacob e seu pai, o artesão Nelton Xavier de Barros, com a colaboração do mestre de obras Adriano Lena.
A angústia do isolamento e as restrições ao contato físico foram o ponto de partida na busca por uma alternativa inteligente de hospedagem segura. A casa permite que o hóspede programe remotamente lembretes para os compromissos do dia, iluminação, abertura de persianas e acionamento da cafeteria. Jacob precisou reinventar-se para fazer os investimentos necessários, quando o mercado de turismo e hospitalidade precisou parar. Ele estudou automação, programação e integração do sistema smart; comprou os itens e foi testando até chegar à configuração ideal. Cada lâmpada da casa tem 16 mil cores, disponibilizando uma infinidade de cenários possíveis. Além de oferecer tranquilidade, conforto, praticidade e contato com a natureza, sua intenção foi aguçar a criatividade dos visitantes.
O nome significa “luz do luar” em hebraico e a Ayla não tem cara de construção high-tech. Preparada para hospedar até duas pessoas, mantém as características de uma casa de campo. Para Jacob, inovação, economia e sustentabilidade são palavras de ordem deste novo jeito de pensar a hospedagem.
Comportamento de consumo
Com a pandemia, Leandro Baptista, gerente comercial da Brasal Incorporações, observa o crescimento da procura por imóveis com home office e a valorização do consumo consciente. “No pós-pandemia, acredito que o cliente continuará procurando imóveis onde ele possa ter mais espaço para ficar com a família”, ressalta. Ele aposta na demanda crescente por varandas e salas maiores.
De acordo com Ademar Moura, gerente comercial e de marketing da EBM, houve uma mudança no comportamento de compra dos imóveis residenciais, pois as pessoas começaram a prestar mais atenção ao tempo gasto com deslocamento, a valorizar cada minuto em família e ao conforto para trabalhar e estudar em casa. Cresce a demanda por personalizações, pela busca por espaços bem definidos, práticos e mais preparados para os múltiplos usos e as diferentes configurações familiares. Projetos que permitem a transformação de um dos quartos em home office – ou até mesmo tirar um dos quartos para deixar a sala maior – e os que possibilitam integração da sala com a cozinha para ampliar a área social são algumas das opções.
“Tempo, espaço e silêncio são as palavras de ordem do morar bem. Antes, estes benefícios eram mais observados pelo público de alto padrão, mas isso foi democratizado”, reflete Ademar. Para ele, as pessoas começaram a pensar em como aproveitar melhor a casa também para receber, quando for novamente possível fazer isso com mais frequência, e acrescenta que morar perto de áreas verdes, ter contato com a natureza e com a possibilidade de realizar atividades ao ar livre também ganharam um significado ainda mais forte.
Se sair de casa “ainda” é se aventurar, que possamos viver o nosso lar com qualidade. E quando tudo isso passar e pudermos sair, que seja para construirmos e habitarmos um mundo melhor.
(Fotos: Divulgação)
Matéria publicada na 45ª edição da Revista Zelo