Década de 50, China. Em um pequeno povoado no sul do país, um menino se aventurava por troncos, galhos e cipós. O objetivo era encontrar um riacho, com a água agitada – um detalhe importante, que não passava despercebido pelo garoto. Ele agachava, se apoiava com as mãos na terra e colocava o barco de papel que havia feito. O rio levava, em sua corrente rápida, e o menino corria, ria, as pernas finas desviando de um obstáculo ou outro.
A cena, mesmo anos depois, não desaparecia da memória de Tai Hsuan-An – nem mesmo do outro lado do mundo. Viraria pintura em seu ateliê na cidade de Goiânia, cidade que escolheu para ser seu novo lar há mais de 40 anos. O trabalho produzido na capital goiana durante as últimas décadas rendeu a exposição Diáspora, Convergência e Conexões, em mostra no Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC) do Centro Cultural Oscar Niemeyer (CCON).
Sob curadoria e produção de PX Silveira, a mostra reúne 180 obras, entre esculturas, pinturas, desenhos e outros trabalhos produzidos por Tai desde 1977, ano em que se mudou para Goiânia. Suas diferentes fases e facetas como artista e, também, como professor de Design na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e de mandarim no Espaço Cultural Milagre dos Peixes, podem ser conhecidas na exposição, que vai até 30 de março de 2019.
O início
A arte não é novidade de Tai – sempre esteve com ele, desde criança. “Meu pais eram artistas. Meu pai era fotógrafo e minha mãe era professora, adorava arte e música. Nesse ambiente que eu cresci”, explica. Desde os 3 anos, ele já desenhava e pintava.
Era o início da carreira como artista. Tai entra para o grupo de pintores da escola primária em 1961 e começa a participar dos concursos anuais de pintura. Em 1961, ganha a medalha de ouro em uma competição regional, com a pintura “As maçãs”. No ano de 1962, se forma no ensino básico e recebe do professor de arte He Zhang a mensagem que lhe seguiria para toda a vida:
“A maior felicidade é o resultado obtido pelo seu próprio esforço contínuo. Espero que se esforce, com a sua inteligência, para se tornar um grande pintor do século XXI e, com seus pincéis, traçar uma esplêndida vida”
Tai levou as palavras de He Zhang para além da China. A bordo do navio holandês Tjitjalenica, ele, aos 15 anos, a mãe e os irmãos vêm para o Brasil, onde desembarcam em agosto de 1965, no porto de Santos. Aqui, se reúnem ao pai, e começam a trabalhar em fazendas no Rio Ribeira de Iguape, em São Paulo, e em Rolândia, no Paraná.
A arte e a cultura chinesa continuavam presentes em sua vida. Nas horas livres, Tai produzia pequenas obras e começava a se interessar pela pintura tradicional chinesa. Em 1968, depois da família viver um tempo em Londrina, no Paraná, ele e a irmã se mudam para São Paulo, onde começam a trabalhar em uma floricultura.
Nessa época, Tai volta a pintar mais e começa a vender seus trabalhos na feira hippie da Praça da República. Lá, fica conhecido como o pintor de cavalos, devido a maior parte de suas pinturas na época serem dos equinos.
A guinada na carreira vem quando Tai se torna aluno de Sun Jiaqin, então um dos discípulos do grande mestre Zhang Daqian, considerado o maior artista moderno chinês. Ele viveu no Brasil, em Mogi das Cruzes, de 1953 a 1972. “Ele era tão renomado que era conhecido como o Picasso do oriente”, lembra Tai.
Com ele, o adolescente Tai começa a aprender e a ter mais contato com a arte de seu país natal. Depois, entra na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde conhece novas técnicas e linguagens de pintura. Além das técnicas chinesas, agora se familiariza mais com arte e a cultura ocidentais.
Goiânia
Graduado, Tai chega a Goiânia em 1977, depois de receber um convite para substituir Frei Nazareno Confaloni, artista italiano radicado em Goiás, como professor nas aulas de desenho e pintura no curso de Arquitetura e Urbanismo na atual PUC Goiás. Desde então, Tai faz parte do corpo docente da universidade. Nos últimos 15 anos, somente leciona para o curso de Design.
Foi também em 1977 que Tai realiza sua primeira exposição individual. O trabalho presente na mostra, realizada no antigo Hotel Bandeirantes, era apenas de pinturas tradicionais chinesas, a guohua. Com pincel chinês, tinta nanquim e traços precisos, suas obras conquistaram a sociedade goiania. “Foi o maior sucesso. A repercussão foi enorme, porque ninguém conhecia pintura chinesa, chamou muita atenção. Vendi praticamente toda a exposição”, comenta.
Mesmo com o tamanho êxito da primeira exposição individual que havia feito na vida, Tai não estava feliz. “Cheguei em casa e pensei: ‘Nossa, tem algo errado. Eu estou em Goiânia, no Centro-oeste, com esse sol maravilhoso, esse povo completamente diferente, e a minha pintura está totalmente fora do contexto’. Senti um impacto. Eu queria mudar”, recorda.
Decidido, Tai começa a ter mais contato com a natureza e a população local. Com artistas goianos, ele saía e ia para a periferia de Goiânia. Lá, descobria um novo mundo. As roupas nos varais, os gatos dormindo nas soleiras das portas, as galinhas e as bananeiras no fundo das casas, tudo fascina e vira arte, em tinta acrílica sobre tela. As novas pinturas fazem parte da fase “Fundos de Quintal”, que reúne as novas experimentações de Tai a partir deste encontro com um novo lado da capital.
Mesmo com as mudanças no estilo, o uso de novas materiais e a abundância de cores, a pintura de Tai não perde a essência da cultura chinesa. “Na minha pintura, você vê algo que tem essa estética chinesa. Isso está presente no modo de traçar um galho, de pintar uma folha”, explica o artista. “A pintura tradicional chinesa é feita com pincéis utilizados para fazer caligrafia. Então, o traço, cada linha, tem a ver com a escrita. Não é simplesmente traçar uma linha e fazer um traço, mas tem todo o uso da energia, que os chineses chamam de ‘chi’ ou ‘qi’, que nasce do interior e tem todo um sentimento envolvido. É muito característico do oriente’, completa.
O pensamento confucionista, taoísta e budista, que constituem a cultura chinesa, também continuam sempre presentes na obra de Tai. A natureza, a temática mais presente nas obras de Tai, é um reflexo dessas filosofias. “O pensamento taoísta fala da integração da humanidade com o meio ambiente. É por isso que os chineses dão importância à natureza”, afirma.
Depois dos fundos de quintal, Tai decide se aventurar agora pelos biomas brasileiros. O primeiro é o cerrado, depois foi o pantanal e assim, o artista passou a conhecer não só a fauna e flora brasileira, mas também outras regiões do país. Esta segunda fase de sua carreira é denominada Natureza Silvestre.
Na terceira fase, Tai se propõe a pensar: o que seria a natureza ideal? Aqui, ele deixa a imaginação aflorar e não se prende ao real para criar as paisagens figurativas de Natureza imaginária. No mesmo rumo, ele resgata e se inspira em suas memórias, na China e no Brasil, e parte para a última e mais recente fase, Sonhos e fantasias. Nela, ele mistura técnicas orientais e ocidentais e cria obras fantásticas – os bambuzais retratados têm várias cores, as folhas das plantas podem ser roxa… “Nada disso existe, mas eu tenho vontade de expressar a emoção desse modo”, opina.
Outros trabalhos
A natureza e seus mais mínimos detalhes também ganham forma nas esculturas de Tai. O trabalho como designer e os conhecimentos de arquitetura somam ao trabalho dele como escultor em obras inventivas, feitas em papelão, que não têm o propósito de ser realistas. Dentre várias em exposição, o destaque fica para as inspiradas no cerrado e na infância, em trabalhos com um tom mais lúdico.
Crítica social também aparece nas obras de Tai. A coleção de pinturas Relações, expostas e vencedoras do primeiro lugar na Bienal Nacional de Arte Contemporânea em Goiânia, em 1993, trazem a estética da pintura tradicional chinesa com uma outra expressão. Nelas, Tai retrata ratos como seres humanos.
Os diferentes tons de preto dos roedores simbolizam as diferentes raças, que na tela, revelam o racismo presente na população brasileira. Em outra obra, eles seguem, desenfreados, um outro rato, que assume a liderança. “Na nossa sociedade, isso é muito comum. Existe um líder e as pessoas, seguem vão atrás, sem nem saber o que é”, comenta.
Além das pinturas e esculturas, outros trabalhos e experimentações, como as aquarelas da série não finalizada de pássaros brasileiros, xilogravuras, desenhos de estudo e os livros sobre design e os ideogramas chineses também estão em exposição. As obras da mostra serão lançada em catálogo nesta terça-feira (19), às 19h, no MAC.
Anote!
Diáspora, Convergências e Conexões – 40 anos na arte de Tai Hsuan-an
Data: até 30 de março de 2019
Local: Museu de Arte Contemporânea de Goiás | Centro Cultural Oscar Niemeyer – Av. Deputado Jamel Cecílio, nº 4490, Setor Fazenda
Gameleira, Goiânia – GO
Horário: Terça a sexta, das 09h às 17h, e Sábado, domingo e feriados, das 11h às 17h
Entrada franca
Site de Tai Hsuan-An