Reunir em um único livro culinária, história e bom humor não é uma das tarefas mais fáceis. Porém, Breno Lerner (foto à direita) o faz com habilidade em “O Ganso Marisco e outros papos de cozinha”, da Editora Melhoramentos. O autor, que não se intitula um cozinheiro, apenas um contador de histórias que aprendeu a cozinhar para melhor ilustrá-las, apresenta uma obra primorosa com 36 contos desvendados de forma agradável e divertida, permitindo ao leitor conhecer e entender um pouco melhor o que se come e por quê. Ainda que não se prponha ao rigor científico, a obra possui riquezas de detalhes adquiridos por meio de muita pesquisa ao longo de 15 anos, das viagens de Breno pelo mundo e de sua paixão pela culinária. Embora não seja um livro de receitas, Lerner oferece algumas exclusivas, dignas dos deuses.
Mas, afinal, que ganso é esse marisco? O que foi servido na última ceia do Titanic? E o último baile do Império, como acabou? Como se alimentavam os marinheiros das grandes navegações, muito antes da descoberta da geladeira e do microondas ou mesmo a grande estrela de Hollywood, Marilyn Monroe? Qual a relação de Eça de Queirós com a a gastronomia histórica a ponto de, em toda a sua obra, citar jantares 560 vezes, almoços, 232 e ceias, 176? Quem reduziu o boi a cubinhos, que hoje ganham a preferência da maioria das donas de casa? O primeiro livro de receitas, a primeira receita escrita conhecida e algumas outras histórias bem curiosas também podem ser conferidas no livro. Basta começar a ler O Ganso Marisco para não conseguir parar antes da página 231.
Já no primeiro capítulo é possível entender um pouco do que possivelmente foi um dos primeiros livros de receitas do mundo. Há mil anos, a cultura da gastronomia era quase uma obsessão entre os governantes persas, que promoviam torneios culinários e disputas de receitas. Diante disso, o príncipe de Alerpo, Saif al-Dawlah al-Hamdani encomendou ao poeta Abu Muhammad al-Muzaffar ibn Sayyar um livro que descrevesse a riqueza gastronômica da época. O apanhado reuniu receitas de palácios, príncipes e de todo mundo que importava, denominando-se, assim, o primeiro livro oficial de receitas. E como não poderia faltar, o autor presenteia o leitor com a receita preferida de Harun al-Rashid, grande califa de Bagdá, a “Mulahwajah”, que pode ser conferida na íntegra na página 15.
E se no mundo atual a variedade de dietas é imensa, já imaginou como seria a dieta da bíblia? O autor sugere que o “criador” preferia um regime mais, digamos, vegetariano naquela época e descreve, embasado em capítulos da própria bíblia, que no princípio os vegetais eram predominantes. E que, com o passar dos anos e os percalços da humanidade como o dilúvio, por exemplo, o homem passou a consumir carne. Um destaque é o Livro de Daniel da bíblia, que é citado por Breno e mostra sua curiosa história e como ele foi considerado sábio pelo imperador Nabucodonosor por apenas se alimentar com legumes e água por dez dias, ficando mais corado e saudável que os demais.
Agora, em se tratando de ganso, mais especificamente o marisco, que dá nome ao livro, vale mencionar que Breno escolheu tal título por considerar uma das histórias mais divertidas e curiosas. Este ganso, também conhecido como ganso das faces brancas, é uma ave que vive nas regiões árticas e migra no inverno para as costas da Inglaterra, Escócia e Irlanda a fim de procriar e se alimentar. Por ter hábitos muito diferentes, uma lenda acabou sendo gerada em torno desta ave. Dizia-se que ela nascia em árvores à beira-mar ou em troncos flutuantes e quando estava com o corpo já formado caía na àgua e saía nadando ou voando. Esta lenda foi tão longe que até padres na época permitiam que seus fiéis comessem o ganso marisco nos períodos de abstinência da carne.
Em “O Ganso marisco e outros papos de cozinha” é possível, ainda, passear por diversos restaurantes antigos e suas histórias. O autor faz um panorama geral, , com endereços e suas especialidades de acordo com a sua data de abertura, como o austríaco Stiftskeller St. Peter do ano de 803, Ma Yu Ching, da China de 1153, Albergue dos Viajantes, do Brasil de 1599, entre outros que ficarão registrados para sempre na memória. Quase todos funcionam até hoje.
E, para finalizar, Lerner oferece ao leitor um curioso, rápido e pequeno dicionário histórico-culinário seguido de um glossário de palavras judaicas presentes em seu quarto livro, além de índice de receitas.
“O Ganso Marisco e outros papos de cozinha” chega em papel e e-book na plataforma e-pub, que pode ser lida em qualquer dispositivo.