<p><em><img src="https://revistazelo.com.br/public/backend/midias/tinymce/Cultura/caetano%202%20c%C3%B3pia.jpg" alt="Tom, Zeca, Moreno e Caetano Veloso (Foto: Divulgação)" width="789" height="354" /></em></p>
<p style="text-align: justify;"> O quintal está arrumado, já varreram a poeira do chão para que todos sentem e sintam. A tarde caiu formosa em tons de deserto, paciente em meio às ansiedades de uma gente. Depois do jantar, olhos e ouvidos se aprumam para escutar e ver as cores e os sons da noite particular. Caetano Veloso tem muitas histórias para cantar.</p>
<p style="text-align: justify;">Desde a infância, a relação de Caetano com matizes é íntima. Não à toa, sua poética é feita de pinturas. Em um cenário montado pelo amigo Hélio Eichbauer, um laço camaleão sorri à plateia enquanto um indeciso pano vermelho alusivo ao parangolé de outro sol – Hélio Oiticica – não sabe se cai ou se se mantém no alto. Eventualmente, o pano é tocado por um coração de luz. Atrás deles, destaca-se o “ponto vermelho de inquietude no amarelo da conformação” – referência dos tempos de Clássico no Severino Vieira. É com essa nostálgica recendência de jenipapo que o espetáculo se manifesta.</p>
<p style="text-align: justify;">Os primeiros acordes remontam aos primórdios. “Alegria, Alegria” toca os peitos cheios de amores da audiência que, assim como os artistas, também se misturam em gerações; avós, pais, filhos, irmãos se deixaram tocar pela força dos acordes maiores que dominam a música até o último acorde conter o número em dissonância.</p>
<p style="text-align: justify;">Em seguida, “O Seu Amor” traz uma mensagem singela sobre tolerância e empatia em tempos difíceis para as relações sociais no Brasil, responder com arte e ternura à invernal emergência da pregação de ódio é dar a outra face, questionar a austeridade dos discursos maniqueístas que são tão perigosos à sociedade. Os timbres dos Veloso chegam aos ares em consonância e se realçam à medida em que se permutam os versos. Destaque para a extensão e controle vocal de Zeca Veloso que cobre as oitavas mais agudas, na ausência de Gal.</p>
<p style="text-align: justify;">Ele, o estreante, ainda fica sob o holofote quando seu pai e irmãos lhe dão “Boas Vindas” como homenagem, outra vez – a música foi composta em ocasião da iminência de seu nascimento. Zeca que participa da composição de “Você Me Deu”, assina versos e música da canção “Todo Homem”, que em meio a construções djavanescas traz ao palco, na instância da letra, a presença de Paula Lavigne, Dedé Gadelha e Dona Canô, ao meditar que “todo homem precisa de uma mãe”. Homenageadas em outras feitas com “Não Me Arrependo”, “Ela e Eu” e “Ofertório”, as matriarcas ecoam a primazia familiar e a atmosfera do lar dos Veloso que permeiam todo o espetáculo.</p>
<p style="text-align: justify;">Entre as inéditas, Tom apresenta “Clarão”, que traz em seu bojo a manhã de um compositor que se amadurece, harmonizando a percepção dos mistérios de um amor com a emoção da sua experiência. Moreno, por sua vez, dedilha “Ninguém Viu”, bela canção, de melodia simples e gostosa, interpretada em dueto com Caetano. “Alexandrino” foi vítima do maior dos erros técnicos que aconteceram. No momento da inédita do patriarca, a batida, gravada em mídia, não foi reproduzida e Caetano voltou aos tempos sessentistas do programa “Esta Noite Se Improvisa…”, e com uma pequena ajuda dos filhos executou o humorado funk, liberando o baile para o caçula dançar. Nesta música, Caetano traz uma referência literária sofisticada em contraponto à simplicidade característica do funk.</p>
<p style="text-align: justify;">Os Veloso interagem com a plateia e Moreno é o mais falante. Entre risos, sorrisos, cantos e contos, surgem relatos de nascimentos das canções; sabores, cheiros, amores, influências e referências de Santo Amaro – por exemplo, o uso de prato e faca como instrumento, característico de Dona Edith do Prato. Outro santamarense, o compositor Cézar Mendes é citado no show. Ele que é professor e parceiro de Tom em “Um Só Lugar”, recebe os carinhos da família em bonita declaração de homenagem.</p>
<p style="text-align: justify;">Em meio ao contar de sua história, Caetano se vale de músicas icônicas para costurar sua linha do tempo. Entre outras, figuram no repertório “Força Estranha”, “Oração ao Tempo”, “Gente”, “Alguém Cantando”, canções de extrema sensibilidade que correspondem a diferentes épocas de sua vida. No entanto, é ao participar da história de seus filhos que Caetano se emociona ainda mais. Vivenciar a plenitude do momento na companhia deles, fazendo arte, traduziu-se em sorrisos bobos diversas vezes.</p>
<p style="text-align: justify;">Ao finalizar o espetáculo com “Tá Escrito”, samba de Xande de Pilares, a esperança invade o auditório em alto astral. É o instante da constatação de que o belo, a arte é o que justifica. Os sorrisos transformam os rostos, as energias se renovam. A letra da música certamente toca Caetano de maneira ímpar por dialogar com sua larga biografia.</p>
<p style="text-align: justify;">Aos setenta e cinco anos de idade, a finitude se aproxima e os momentos em comunhão com os queridos são elevados a outra ordem. Há um quê de despedida nas referências, no repertório, nas contingências… algo que se impõe enquanto mistério, um certo desconforto na aproximação do termo. Mas ele está lá, subindo ao palco mais uma vez e sempre. Há Caetano vivo, muito vivo! Axé!</p>
<p style="text-align: justify;"><img src="https://revistazelo.com.br/public/backend/midias/tinymce/Cultura/3d1ef179-b606-4541-9958-cb207db0ca99.jpg" alt="(Foto: André Luiz Pacheco da Silva)" width="800" height="392" /></p>
<p style="text-align: right;"><em>*André Luiz Pacheco da Silva é estudante de psicologia </em><br /><em>e psicanálise, escritor e melômano</em></p>