Paisagens e cenários inusitados em que seres alienígenas, discos voadores e outros objetos vindos do espaço convivem naturalmente com pessoas e bichos no ambiente rural ou no pacato cotidiano das cidadezinhas do interior. Esse universo ao mesmo tempo fantástico e tão familiar está presente na exposição Contatos imediatos, do artista plástico brasiliense Demir, que será inaugurada no próximo dia 14 de dezembro, às 19 horas, na Vila Cultural Cora Coralina.
A mostra, que permanece aberta para visitação até o dia 25 de janeiro de 2024, reúne 70 trabalhos inéditos do artista, entre desenhos, pinturas, serigrafias e objetos. Nesse conjunto de obras, Demir explora, de forma autoral, criativa e irreverente, as possibilidades desse insólito encontro entre ícones da ufologia e do imaginário pop dos quadrinhos e filmes de ficção científica e a rotina da vida interiorana brasileira, na lida no campo e nos espaços urbanos e também nas festas populares, dentro da tradição da arte popular.
A exposição Contatos imediatos é a primeira grande mostra individual do artista de 64 anos, nascido Valdemir dos Santos e que adotou o nome artístico de Demir, por ser o seu apelido desde a infância. A organização da exposição é uma iniciativa da editora Hidrolands Grafisch Atelier, do artista plástico Marcelo Solá, e a curadoria é de Débora Duarte.
Colecionador da obra de Demir, com um acervo que já reúne 40 trabalhos, Solá se interessou pelos desenhos e pinturas do artista desde quando o encontrou pela primeira vez, há cerca de três anos. Em uma de suas muitas viagens a Pirenópolis, quando passava por Olhos d’Água, Solá avistou um senhor pintando em um cavalete improvisado na calçada da casa de um morador local. Resolveu voltar e comprou uma “pinturinha” de Demir, o artista do cavalete. Esse encontro fortuito marcou o início de um contato mais estreito entre ambos – Solá não apenas adquiriu mais obras de Demir, mas se tornou um grande incentivador do artista, fornecendo-lhe material, como papel e tinta, para que ele pudesse desenvolver o seu trabalho e instigando-o a experimentar novas técnicas, como tinta a óleo, acrílica e lápis de cor.
Um pouco depois de conhecer Solá, Demir comprou uma Kombi e a transformou em uma casa-ateliê sobre rodas, a bordo da qual passou a percorrer a região de Pirenópolis e também da Chapada dos Veadeiros para expor e comercializar seus trabalhos. A temática rural-extraterreste de seus desenhos e pinturas e a Kombi devidamente customizada por ele chamaram a atenção não só de turistas e apreciadores de arte, mas também da imprensa. Apesar do sucesso junto ao público, porém, Demir resolveu encerrar essa temporada como artista itinerante, vendeu a Kombi e hoje vive em uma chácara em Brazlândia, cidade-satélite de Brasília, onde mantém seu ateliê.
O artista afirma que sempre foi muito aficionado por tudo que diz respeito à ufologia, um tema presente não só na sua arte, mas também nos seus sonhos. “Sonho sempre com UFOs, luzes, coisas estranhas no céu”, conta. Esse repertório também é alimentado não só pelos filmes de ficção científica e histórias em quadrinhos do gênero que diz apreciar bastante, mas ainda pelas muitas histórias que, nas suas andanças nas regiões de Pirenópolis e da Chapada, ouviu de gente que jurou ter visto luzes estranhas ou outros objetos não identificados no céu – narrativas, aliás, muito comuns principalmente na Chapada, fazendo parte, como diz Solá, da “mística” local. Todo esse universo é fonte recorrente de inspiração para criar suas paisagens imaginárias, já que Demir costuma dizer que não tem o “dom de pintar o real”.
Apesar de só estar tendo a chance agora de mostrar seus trabalhos em uma grande exposição individual, a trajetória artística de Demir vem de longa data. Filho de migrantes nordestinos, de Natal (RN), que se mudaram para Brasília, ele diz ter herdado o talento para a arte da mãe, dona Marina, que trabalhava como poteira. Na escola – ele cursou apenas o Ensino Fundamental –, interessava-se sobretudo pelas aulas de Educação Artística. Aos 18 anos, começou a produzir suas primeiras aquarelas e não parou mais.
No final da década de 1980 e nos anos 1990, participou de várias edições dos salões de arte naïf de Brasília e de outras coletivas. Hoje, vive em sua chácara em Brazlândia e se dedica a produzir intensamente. Para a exposição a ser inaugurada na Cora Coralina, experimentou diversas técnicas e suportes, inclusive cerâmica e material reciclado, como pedaços de cano, restos de madeira, papelão, embalagens – “os restos do mundo em decadência”, como define a curadora Débora Duarte. Entre os trabalhos que vai mostrar, Demir destaca quatro séries sobre sua história em que ele próprio aparece como personagem, como em uma HQ.
Curadoria
A exposição Contatos imediatos também marca a estreia de Débora Duarte, 28 anos, como curadora de arte. Débora é professora e doutoranda em Teoria da Literatura Latino-Americana na UnB, com uma pesquisa sobre a provisoriedade na estética contemporânea, articulando as práticas artísticas atuais ao conceito de inespecificidade. Ela foi convidada, no início do ano, por Marcelo Solá para organizar o acervo da Hidrolands Grafisch Atelier. A ideia era montar uma exposição com os artistas do acervo da editora, mas as conversas foram evoluindo até chegar à decisão de realizar a mostra individual de Demir. Débora salienta que o objetivo da mostra é promover uma “reapresentação” do artista, tendo em vista que, apesar de ter circulado e ter seu nome conhecido no circuito de arte naïf brasiliense das décadas de 1980 e 1990, ele foi submetido a um processo de “esquecimento”, permanecendo afastado por muito tempo dos espaços culturais institucionais.
Para fazer a seleção dos trabalhos da exposição, Débora visitou o ateliê do artista em Brazlândia e o que lhe causou impacto logo de início foi a presença recorrente da figura do extraterrestre em interação com pessoas e animais, na vida cotidiana e ordinária, realizando as mesmas atividades dos humanos. Ela relacionou esse motivo onipresente na obra de Demir com as teorias pós-humanistas da pesquisadora brasileira Juliana Fausto e da norte-americana Donna Haraway, que abrem espaço para pensar uma relação interespécies fora da lógica colonizatória e exploratória. Sobre esse aspecto, Débora ressalta ainda que fez questão de se desfazer do termo “naïf” para classificar o artista – em direção oposta à forma como sua obra era catalogada nas exposições de arte naïf em Brasília –, já que ele próprio prefere se autodenominar como um “artista primitivo”.
A curadora lembra que “primitivo” foi um termo utilizado pejorativamente para denominar aqueles que têm um tipo de vida diverso da forma de organização colonial europeia. Mas, no caso de Demir, na perspectiva de Débora, a palavra “primitivo” foi apropriada com muita “veemência”, o que configura não só uma maneira singular como ele enxerga a própria obra, mas também uma atitude de recusa à postura de ingenuidade (a correspondência para o termo “naïf”) que “tutelou artistas apenas pela sua desvinculação com a academia ou que estão sob a alcunha de autodidatismo”, conforme a curadora escreve no texto de apresentação da mostra. Débora enfatiza que Demir não se vê também como “autodidata”, porque o seu trabalho vincula-se a uma coletividade.
Todas as obras da exposição estarão à venda, inclusive duas serigrafias, com 30 exemplares cada uma, impressas pela Hidrolands Grafisch Atelier.
Hidrolands Grafisch Atelier
Atuando há dez anos, a Hidrolands Grafisch Atelier foi fundada por Marcelo Solá em Hidrolândia (GO) para divulgar o trabalho de novos artistas e produzir o que Solá denomina de “livros de coleção”, que consiste em edições com pequenas tiragens, de 200 exemplares no máximo, assinadas e numeradas, com capas em tecido e acabamento artesanal. Entre os artistas do acervo da Hidrolands, estão Pedro Kasteljins e Estêvão Parreiras. Na relação de livros já publicados, entre outros títulos, estão os volumes Das cores ao século XXI – Uma história dos movimentos pós-punk em Goiânia nos anos 80, de Jadson Jr., A mulher que nasceu sem metafísica, de Tarsilla Couto de Brito, e os mais recentes Oco, de Walacy Neto, e Abajur Always On, de Narjara Medeiros, com ilustrações do próprio Marcelo Solá. De autoria de Solá, o livro Biologia do futuro + Catálogo das trevas, lançado neste segundo semestre de 2023, marca a entrada da Hidrolands no mercado internacional, por meio da livraria/editora Printed Matters, de Nova York.
Serviço: Exposição Contatos Imediatos do artista brasiliense Demir
Data de abertura: 14 de dezembro (quinta-feira), às 19 horas
Local: Vila Cultural Cora Coralina, Rua 23 c/ Rua 3, Setor Central
Visitas: até 25 de janeiro de 2024, de segunda a domingo, das 9 às 17 horas
Telefone: (62) 3201-9863