Giovana Andrade
Mantas de fuxico e de crochê, vasos de todos os tamanhos, móveis de formatos inusitados, porcelanas, pedras coloridas, cristaleiras recheadas de lembranças, uma infinidade de miniaturas, portas-retratos, espelhos de bolso, tapetes por todo o chão, e muitos, muitos quadros. Ao atravessar a porta de entrada da casa de Sáida Cunha, mergulhamos em um mar de cores e texturas que enchem os olhos.
Em uma tarde quente de primavera, a artista plástica, professora e colecionadora guiou a Zelo em um passeio por sua história, presente em cada um dos elementos de sua coleção. No espaço em que se conjugam sala de televisão e galeria de arte particular, as paredes altas e cobertas de telas apresentavam alguns espaços em branco, e ainda assim seria necessário um dia inteiro – ou mais – para explorar as obras que estavam ali presentes.
Na ocasião, parte do acervo de Sáida estava exposto na mostra “Minha vida está aqui – Sáida Cunha e sua coleção”. Com curadoria de Divino Sobral, a exposição reuniu 82 trabalhos, divididos entre obras da própria colecionadora, e de artistas como Nazareno Confaloni, Amaury Menezes, Ana Maria Pacheco, Elder Rocha Lima, Goiandira do Couto, Siron Franco, Tai Hsuan-An, além de outros dez expressivos nomes da arte.
Desde as boas-vindas até a despedida, foram incontáveis as vezes em que Sáida se referiu a esses e outros artistas de sua coleção com muito carinho, expressando aquele que ela confirmou ser o principal critério considerado para a seleção das criações que ela adquire. “São obras dos meus amigos, dos meus alunos. Eu não tenho uma coleção de profissionais, eu tenho uma coleção afetiva, são coisas que eu gosto, de amigos meus, de pessoas por quem eu tenho um amor profundo. Aqui não é um museu, né?”.
Nos relatos feitos pela colecionadora em meio a risadas espontâneas, a lembrança das pessoas que passaram por sua vida é uma constante. Ao rememorar o início de sua trajetória, por exemplo, ela menciona o nome da professora “dona Maria”, que a incentivou a fazer o então chamado “Curso Normal”, para que pudesse lecionar. “Eu terminei Belas Artes e fiz o normalista, para poder dar aula.”
“Ensinar foi o significado da minha vida, porque eu aprendi muito com meus alunos, e eu só tenho a agradecer. Eu falo para eles: ‘Eu gosto tanto de vocês que chega a doer.’ E até hoje nós somos amigos, temos contato.” Professora da Escola Goiana de Belas Artes, onde se formou, e, posteriormente, da Faculdade de Arquitetura da PUC Goiás, Sáida cultivou amizades das quais fala com visível amor e emoção.
Ao Frei Nazareno Confaloni, ela se refere como “o amigo da minha vida”, e as obras do artista em seu acervo são tantas que ela sequer consegue enumerar. “Ele era um ser humano maravilhoso. Eu tenho um dos trabalhos dele em que está assinado: ‘À minha melhor amiga, à minha grande amiga’… Nós éramos amigos demais da conta, e ele não aceitava dar aula se não fosse comigo, então eu sempre dei aula junto com ele.”
Outro colega de profissão, tanto na arte quanto no magistério, D.J. Oliveira foi o primeiro artista de quem a colecionadora adquiriu uma obra de arte. Frei, Oliveira, Amaury, Tai, Ritter, Selma, Ross, Ana Maria, Elder. Na boca coberta de batom vermelho de Sáida, os grandes nomes da arte goiana ganham nuances de intimidade, e perdem, além do sobrenome, o caráter de idealização inalcançável que muitas vezes cultivamos.
Por meio dos laços de amizade e do interesse pelas artes plásticas, a colecionadora montou um acervo que conta, simultaneamente, a história de sua própria vida, e a trajetória artística da Capital do Cerrado. “Quando eu fiz a exposição, eu percebi que eu preservei a história de Goiânia. Você consegue ver que os artistas goianos têm caminhos diferentes, não são uma escola. Têm artistas de todo modelo aqui, e cada um segue o seu próprio caminho.”
A artista se orgulha de cumprir esse papel de preservação, especialmente à medida que observa uma vasta destruição da cidade como ela era. “Goiânia não é mais a mesma. Nós tínhamos uma arquitetura única, porque a casa não era um módulo, era feita para o dono, tinha as suas características.” Nesse sentido, ela destaca o trabalho de arquitetos como Raul Filó, Fernando Galvão, Luiz Fernando Teixeira – o Xibiu –, Fernando Rabelo e Silas Varizo.
O último, por sinal, foi o responsável pelo projeto da antiga casa de Sáida, localizada no Setor Oeste. Ao falar sobre o que um dia foi seu lar, a colecionadora demonstra um grande carinho pela construção, mesclado ao arrependimento de ter permitido sua destruição, e revela que essa perda foi o motivo pelo qual ela abandonou as tintas e pincéis. “Depois disso, nunca mais pintei, não dei conta.”
Lamentavelmente interrompida, a produção artística de Sáida, assim como seu acervo, era guiada pelo desejo de registrar e preservar o que estava à sua volta. “A paisagem preserva a história, tanto que se conhece a história primitiva por causa das imagens.” Ela destaca que costumava pintar nos próprios locais, e que guarda até hoje o cavalete de campo da época. Em pinturas de lugares como o Zoológico de Goiânia, o caminho para a Pecuária, o quintal da casa no Setor Oeste, a fachada da antiga Escola de Belas Artes, as telas eternizam existências que, de outra forma, se perderiam com facilidade.
Assim como a própria coleção de arte, os depoimentos de Sáida, seu modo de se vestir, a decoração de sua casa, o tom de voz sempre animado, todos possuem a mesma alma. A abundância de imagens nas paredes se assemelha à riqueza de informações e memórias em sua fala. Em meio ao maximalismo exacerbado, colorido e tecido de uma maneira única, a impressão é de que a artista precisa encontrar formas para expressar a grandiosidade do que sente.
Matéria publicada na edição 49 da revista Zelo.