Outra maneira de definir atemporalidade talvez seja como uma espécie de perpetuidade afetiva, algo que cativa e comove independentemente da passagem do tempo e de qualquer alteração de costumes. O hábito de colecionar, por exemplo, é uma dessas práticas que atravessam gerações, que são, principalmente, passadas através delas, de pai para filho, sob forte influência de laços afetivos. Entre tantos itens que tradicionalmente se tornam objetos de desejo e integram as mais distintas coleções pelo mundo, um deles tem um valor a mais nos dias de hoje. Mesmo diante da corrida tecnológica de lançamentos diários nas plataformas digitais de música, o vinil se mantém no mercado e voltou a fazer parte do nosso cotidiano. E os colecionadores de vinis antigos ainda contam com lançamentos que atraem todas as gerações e resgatam o ritual por trás de deliciar-se com o som em volta de uma vitrola.
Com as pessoas em casa devido à pandemia, o desejo por consumir mais o produto teve um aumento expressivo. De acordo com pesquisa feita pela organização comercial Recording Industry Association of America (RIAA), a venda de LPs superou a de CDs no primeiro semestre de 2020, fato que não acontecia desde 1986. Os discos começaram, inclusive, a ser mais cobiçados pela geração millennial, que deu início a um movimento de continuidade das coleções de familiares e de reconectar-se com o passado, dando força para que muitos artistas atuais começassem a lançar vinis. Eis que ganha força o resgate dos característicos ruídos das vitrolas, sons que traduzem mais do que somente o passado, mas memórias de tradição e amor que vivem através do tempo e não apesar dele.
Melodia que ressoa das linhas
O jornalista Luiz Fernando Rocha Lima, 73, que hoje mantém pouco mais de uma centena de discos na sua coleção, conta que a música sempre animou os domingos da família, com sambas, tangos, boleros e valsas, todos saídos das eletrolas ou radiolas Philips ou Telefunken da época. “Equipadas com rádio de três ou mais faixas de ondas médias e curtas, que serviam para acompanhar os noticiários e os programas de auditório da Rádio Nacional, esses aparelhos tinham, como recurso principal, um toca-discos de três velocidades, 78 rpm tradicionais, 45 e 33 rpm, o que possibilitava a utilização do novo formato de disco. Utilizando esses recursos, convivia-se com os discos e, em minha casa, a música era uma constante, notadamente nos finais de semana”, relembra.
Rocha Lima revela que foi na juventude que a sua paixão pelo ambiente musical se tornou mais acentuada. Integrante do conjunto Os Zambis, no qual tocava bateria, ele também conduziu um programa especializado em jazz e bossa nova, na Rádio Independência de Goiânia. “O jazz era, e ainda é, uma maior preferência”, garante. Segundo ele, para levar o programa ao ar, eram necessários uma boa pesquisa e bons discos. “O programa me proporcionou a propriedade de uma belíssima discoteca dessa linha musical, rica em qualidade e em quantidade, oferecida como pagamento pelos serviços prestados à emissora após o encerramento do mesmo”, afirma ele, que chegou a impressionar sua mãe com o volume da paga recebida.
Seu próximo grande encontro com os discos seria ao assumir o discotecário – termo que se refere ao que seria o ofício do DJ nos dias de hoje – de uma boate, a Kafuné, em frente ao Jóquei Clube de Goiás, a pedido de uma amiga que comandava o local. “Manuseando os LPs e compactos, eu animava – eventualmente desanimava – as noites e madrugadas dos inúmeros casais apaixonados da Capital. Em todas essas situações, o fundamental e único insumo da atividade era o disco de vinil”, comenta. O jornalista reconhece a praticidade das plataformas de streaming tão populares atualmente, mas pontua que a elas faltam o glamour e a cerimônia do manuseio dos vinis, como ele diz. “Tecnologias fantásticas, mas que certamente não concedem a sensação de prazer e de domínio sobre o objeto disco, quando, seguro pelas margens, é assentado no prato que o faz girar e o posiciona para receber a agulha que vai extrair suas sonoridades, ruídos e emoções”, descreve.
Hoje, os discos acompanham Luiz Fernando, com um copo de whisky ou taça de vinho, nas tardes de sextas, sábados ou de qualquer dia, diante do confinamento promovido pela pandemia. Para ele, entre os rótulos mais marcantes da sua coleção estão o disco do show de Frank Sinatra no Brasil, os compactos com músicas do festival goiano ComunicaSom, que traz a execução de Outros Carnavais, de Renato Castelo e Guliver Leão, e o de Araguaia 1 e 2, com Marcelo Barra, assim como três álbuns do trio francês PlayBach, importantes para o despertar das filhas para gêneros como o jazz e o clássico, conforme ele conta. “No meu sentimento, o LP transcende o papel de objeto portador de trilhas sonoras. Ele carrega, na sua capa, no seu rótulo, e até nos ruídos de seus arranhões, histórias, lembranças e emoções que enriquecem e fazem brilhar ainda mais a melodia que ressoa de suas linhas”, conjectura.
Curiosidade, pesquisa, paciência e atenção
A história do servidor público Ricardo Freire, 47, com os discos de vinil começou no final da década de 1970, por meio dos LPs que seus pais tinham. “Em 1983, meus pais compraram um novo aparelho de som e levaram os filhos para comprar novos vinis. Eu tinha 10 anos de idade e a partir daí comecei a minha coleção, há 37 anos”, relembra ele, que descreve o colecionador como um ser curioso, pesquisador, paciente e atento. “A música em formato físico, analógico ou digital é de qualidade superior ao formato MP3 ou em streaming. Logo, eu sempre optei por escutar música em LP ou CD. Ouço música durante todo o dia e o meu ritual segue uma ordem de escutar as últimas aquisições e eventualmente repetir algum título mais apreciado”, afirma.
Apesar de o hábito ter se dado através da família, Ricardo considera que o seu caminho junto a ela se tornou individual a partir da adolescência. “Acho que o gosto por colecionar é pessoal, não obstante a influência dos pais na infância seja imprescindível para despertar o hábito. Vejo a nova geração optar por escutar música em streaming em sua maioria pela facilidade. Uma pequena parcela coleciona vinis, embora poderia ser maior o número se os preços fossem mais acessíveis e se tivéssemos mais lançamentos em edição nacional. Como já dito, a curiosidade concedida permite-lhe vasculhar a internet e encontrar títulos mundo afora”, pondera.
Freire revela que muitos dos vinis da sua coleção são especiais. De acordo com ele, entre os mais marcantes estão os primeiros ouvidos, como Chopin e Beatles; os primeiros que ele adquiriu, como Iron Maiden, Scorpions ou Whitesnake; aqueles mais difíceis de achar, como Bölzer, assim como os títulos mais caros. “Aproveito para dizer aos leitores que a experiência da música escutada é parte do conjunto da obra, que consta também das artes da capa e do encarte do álbum, além das informações escritas neste. Logo, o consumo da música para ser pleno deve provir do álbum em meio físico”, conclui.
Ritual através de gerações
Amigo de longa data de Ricardo, o arquiteto Fernando Rocha Galvão, 47, conta que uma de suas memórias com a música vem dos tempos do segundo grau, quando ia para a casa do amigo e se dedicavam a escutar e gravar fitas cassete com as melhores coletâneas da época. “Meu pai sempre gostou muito de música e já colecionava vinis, cassetes e CDs. Meus primeiros discos foram o Jailbreak, do AC/DC, e o Dire Straits, do Brothers in Arms, comprados em 1985, na Mesbla, tradicional loja de departamentos fechada no final dos anos 1990. Um deles foi uma troca no clube do disco da própria Mesbla. A cada dez discos comprados, a gente ganhava um outro vinil ou cassete”, relembra.
O arquiteto conta que gosta de apreciar seus discos sozinho, ouvi-los sem interferências, como diz. “O ritual do vinil é fantástico: tirar da embalagem, escolher o lado, ler o encarte enquanto o disco toca, ouvir o chiado e a alta qualidade de som, o que se perdeu com o CD. Gosto de escutar sozinho, sem barulho, afinal, um dos diferenciais do vinil é o chiado que ele produz. É um momento de pura descontração e prazer”, descreve. Além dos dois álbuns mencionados por ele, Fernando enumera clássicos como alguns de seus preferidos: Led Zeppelin, Queen, Dire Straits, David Bowie, The Clash, Free, Sly and Family Stone, Rolling Stones, Eric Clapton, Ramones, Santana, Neil Young, Black Sabbath e Pink Floyd. “Um dos especiais, talvez o mais, é a caixa dos Beatles, que ganhei do meu irmão, Marcelo Galvão. Mas, no geral, gosto de vários estilos. Não tenho um preferido, depende muito do momento. Para trabalhar, às vezes, escuto um rock mais pesado, ocasionalmente uma música erudita. Cada momento pede um estilo”, descreve.
Tendo absorvido tanto o hábito de colecionar quanto a paixão pelos discos do pai, Galvão comenta que acredita nessa passagem através das gerações. “Meu filho gosta muito de escutar e de mexer com vinil. É uma diversão para ele. Totalmente diferente do que vemos hoje. Grande parte dessa nova geração não tem paciência e nem interesse nisso. Querem tudo pronto e rápido. Querem uma música? Tem no Spotify. Querem um filme? Netflix. O vinil virou item de colecionador e de apaixonados por música e qualidade de som”, vislumbra.
Álbum de lembranças
“A coleção de vinis é como se fosse um álbum de retratos para mim, então, cada disco me lembra uma coisa, é uma mistura. Quando eu vejo as pessoas fazendo suas coleções, eu identifico inúmeros motivos. O meu princípio é a música, não exatamente reunir o maior número de discos”, afirma o arquiteto Sanderson Porto, 53, nascido em 1967, ano de lançamento de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, álbum de Os Beatles. Ele ainda conta que cresceu ouvindo os discos de MPB de suas tias. “Eu tinha cinco ou seis anos, lembro que elas tinham Caetano Veloso, Maria Bethânia, mas tinham Beatles também. Então, a minha paixão começou pela música, o vinil foi uma decorrência. A partir desses discos que eu ouvia quando as visitava, comecei a ter interesse por ouvir rádio e os discos do meu pai na radiola que ele tinha em casa”, relembra.
Porto enfatiza que uma questão que chama a sua atenção no vinil é a qualidade do som, a gama de frequências que o diferencia. Ele diz que não tem um ritual propriamente dito com os seus discos. “Eu escuto música enquanto trabalho, às vezes, ela me ajuda até durante o desenvolvimento de um projeto. Mas quando eu estou em casa, no meu estúdio, a relação é mais emocional. Se eu pego um disco mais antigo, que me lembra de momentos marcantes, uma coisa puxa a outra. A música tem muito disso, essa relação emocional de reativar memórias de alguma fase da vida”, declara.
“Nada se compara a você ter na sua coleção o álbum de um artista que você admira, é como um tributo”, afirma. O primeiro disco comprado por Sanderson, por volta dos seus 13 anos, foi o Slade Alive, álbum da banda britânica de rock Slade, e ele conta que o escuta frequentemente até hoje. Outro disco que o arquiteto menciona com carinho é o Hey Jude, dos Beatles. “Eu gostava muito de ouvi-lo, tinha em torno de 5 ou 6 anos, e todas as vezes em que ia até a casa dos meus avós e minhas tias, colocava para tocar”, relembra. Sanderson ainda cita um disco da sua coleção que tem forte apelo emocional, o próprio Sgt. Pepper’s, dos Beatles. “É a prensagem do ano em que eu nasci, a versão mono. Ele já não toca, está desgastado pelo tempo, com a qualidade comprometida, mas eu o guardo como um souvenir muito especial.”
O arquiteto enfatiza que a qualidade do vinil, para ele, está intimamente ligada à valorização por trás de todo o trabalho com a música, do esforço implicado ali. “Isso eleva a questão de colecionar não estar ligada ao hábito de acumular, mas de reunir memórias. Eu vejo que isso tem sido valorizado novamente, existe uma virada na indústria fonográfica de resgate dos lançamentos de discos. Então, para mim, não é simplesmente contar quantos vinis tem a sua coleção, mas ter um acervo que gera boas lembranças”, conclui.
Matéria publicada na 45ª edição da Revista Zelo